quinta-feira, abril 18, 2024

Siêncio

(Vilhelm Hammershøi)

Houve um tempo de silêncio. Não se sabe como se perderam as palavras, mas fora de repente. A rapariga apaixonada não foi capaz de dizer do seu amor, o homem da mercearia deixou de enunciar as maravilhosas especiarias chegadas de Marrocos, nas escolas não mais se ouviram algarviadas de meninos.

Foram os pássaros que, estranhando a mudez, iniciaram a época dos gorjeios permanentes. Dia e noite, excediam-se em melodias extraordinárias, como que a lembrar da beleza da voz.

Primeiro, apenas as criaturas aladas se fizeram ouvir (diz-se que eram anjos disfarçados de pássaros), mas ao longo dos dias e noites, pouco a pouco, começaram as palavras ditas em surdina pelos amantes, logo as crianças se apressaram a desenrolar pequenas frases em reposta aos incentivos dos pais e, não tardou nada a ser um novo tempo, o tempo das palavras ditas.



(Something Not Right - Glen Alfred)

quinta-feira, março 28, 2024

Cicatrizes

 

(Henri Rousseau)

Desde pequena que tinha aquele hábito. Fechava-se no quarto, persianas corridas, a ver no escuro.

Menina. O que tanto vês no escuro? Perguntava-lhe a mãe.

Tanta coisa! Tudo o que eu quiser!

Era no escuro que sentia o corpo mais vivo. Ontem, as veias a latejarem de sangue jovem e quente. Hoje, a evidência da idade nas cicatrizes que lhe marcam a pele.

Quedam-se-lhe as mãos no baixo ventre, onde uma une as virilhas, logo se encontrando com duas mais pequenas, simétricas, um pouco abaixo. Não são as únicas testemunhas da frieza do bisturi. Um pulso, um pé… E ainda as marcas de quedas nos joelhos.

Há ainda uma, a mais recôndita e importante de todas, irregular, por vezes dolorosa, traço primeiro de uma vida a rasgar caminho, portal para o mundo de todas as dores e todos os prazeres.


(Mei-Lan, Eternal Soul)

segunda-feira, fevereiro 19, 2024

Perda

 


Tinha 18 anos quando João morrera. Não sabia ainda da dor da perda física e de como se estranhava, atingindo o peito como uma bala explosiva, causadora de ferimento maior. 

Fora logo pela manhã. Tinha acabado de se sentar na cozinha, o café com leite quente, na chávena de flores da Vó Zira, ainda intocado. A Tia Manecas dizia palavras cinzentas na manhã clara e nada as podia fazer voltar atrás! 

Demorou a acreditar na mensageira de tamanha desgraça. Ainda Domingo o calor das mãos dele, do João, do seu João, tinha aquecido as suas, subrepticiamente, no final da missa. Nem um beijo sequer haviam trocado. 

Tinha 18 anos e julgou nunca mais amar. 


(Cigarretes After Sex - Cry)

domingo, dezembro 31, 2023

Luz

 


Que a Luz prevaleça e o Homem se deixe inundar dela!


Procuro uma alegria

                uma mala vazia

                do final de ano

                e eis que tenho na mão

                - flor do cotidiano -

                é vôo de um pássaro

                é uma canção.


           Carlos Drummond de Andrade


https://youtu.be/evmFy9F1ikk?si=eg_US9DO99_44ThA
Ricardo Ribeiro - Mondadeiras

quinta-feira, dezembro 28, 2023

Útero

Maria Antónia deu por si a mudar por dentro. Tinha dores (de crescimento?) pelo corpo inteiro. Até para dormir se estranhou. Ela, que sempre encontrara consolo a adormecer de barriga para baixo, uma perna encolhida e outra esticada (tal e qual o pai), mãos debaixo da almofada de cetim, viu-se em posição fetal, enroscada em si mesma, evitando mexer-se um milímetro.

Atacavam-na lembranças de anos remotos, criança viva em correrias, gargalhadas a ecoarem na casa grande e no quintal. A mãe a manejar com destreza a agulha de croché, dando vida a colchas que dizia irem, um dia, cobrir as camas de sua casa. Sua? Pois se aquela era a sua casa!!!

O pai não costumava falar no futuro, à excepção da poupança! Sempre a ensinara que não podia deixar a luz acesa num aposento vazio ou que a marmelada a secar na janela era para comer quando houvesse uma ocasião especial (a lembrar-lhe da vez em que ela, matreira e ingénua, fora comendo o conteúdo de uma tigela, deixando o redondo da "capa" dura a disfarçar).

Naquele dia de Inverno, deixou-se ficar no quente dos lençóis, arredondou-se o mais possível, como que a abraçar-se, e desnasceu.


quarta-feira, novembro 29, 2023

Curiosidades de viagem

 

(imagem daqui)

O terminal do aeroporto fervilha de vida singular, mas plural de diversidade. Um casal de Judeus ortodoxos, novíssimos, atrai o muitos olhares. Ela, com um bebé nos braços, traja de azul escuro, camisola larga e comprida a combinar com a saia de pregas pelo tornozelo, onde espreitam as meias grossas agasalhando os pés nas sabrinas pretas. Na cabeça, um lenço igualmente preto. Ele, com o costumeiro fato e chapéu pretos, as peiot (pequenos cachos) emoldurando o rosto pálido. Passam os olhos pelos produtos de marca, detendo-se nas lojas de luxo, mas nada comprando.

Há um certo ar de recriminação e desconforto, ainda que disfarçado.

No entanto, a chegada de uma família japonesa arrebata as atenções. Homem e mulher elegantíssimos, vestidos com roupa Prada e acessórios marcadamente extravagantes, seguidos por dois rapazes adolescentes usando sapatilhas Balenciaga, airpods a afastar qualquer som externo e olhares perdidos na sua “onda”.

Demoram-se um pouco na zona de onde o primeiro casal tinha acabado de sair, compram uma mala Céline de mil e seiscentos euros e uma pequena caixa com dois pares meias de homem Louis Vuitton de quinhentos.

Dirigem-se à porta de embarque conforme chegaram, altivos e distantes, apenas com mais dois sacos de compras e menos alguns euros na conta do cartão de crédito dourado.

Há um certo ar de recriminação e desconforto, ainda que disfarçado. Contudo, acrescente-se-lhe uma ponta de inveja.

Na hora de deixarem os sofás, há garrafas de água vazias, cascas de banana e invólucros de bolachas e chocolates nas mesas baixas.

Dirigem-se à porta de embarque de uma companhia low cost, arrastando as pequenas malas de dimensão regulamentar.

Sigo-os, depois de depositar o lixo no caixote mais próximo.


 
(Hania Rani - Nancy Jazz Pulsations)