Houve um tempo de silêncio. Não se sabe
como se perderam as palavras, mas fora de repente. A rapariga apaixonada não
foi capaz de dizer do seu amor, o homem da mercearia deixou de enunciar as
maravilhosas especiarias chegadas de Marrocos, nas escolas não mais se ouviram
algarviadas de meninos.
Foram os pássaros que, estranhando a
mudez, iniciaram a época dos gorjeios permanentes. Dia e noite, excediam-se em
melodias extraordinárias, como que a lembrar da beleza da voz.
Primeiro, apenas as criaturas aladas se
fizeram ouvir (diz-se que eram anjos disfarçados de pássaros), mas ao longo dos
dias e noites, pouco a pouco, começaram as palavras ditas em surdina pelos amantes,
logo as crianças se apressaram a desenrolar pequenas frases em reposta aos
incentivos dos pais e, não tardou nada a ser um novo tempo, o tempo das
palavras ditas.
Desde pequena
que tinha aquele hábito. Fechava-se no quarto, persianas corridas, a ver no
escuro.
Menina. O que
tanto vês no escuro? Perguntava-lhe a mãe.
Tanta coisa!
Tudo o que eu quiser!
Era no escuro
que sentia o corpo mais vivo. Ontem, as veias a latejarem de sangue jovem e
quente. Hoje, a evidência da idade nas cicatrizes que lhe marcam a pele.
Quedam-se-lhe as
mãos no baixo ventre, onde uma une as virilhas, logo se encontrando com duas
mais pequenas, simétricas, um pouco abaixo. Não são as únicas testemunhas da
frieza do bisturi. Um pulso, um pé… E ainda as marcas de quedas nos joelhos.
Há ainda uma, a
mais recôndita e importante de todas, irregular, por vezes dolorosa, traço
primeiro de uma vida a rasgar caminho, portal para o mundo de todas as dores e
todos os prazeres.
Tinha 18 anos quando João morrera. Não sabia ainda da dor da perda física e de como se estranhava, atingindo o peito como uma bala explosiva, causadora de ferimento maior.
Fora logo pela manhã. Tinha acabado de se sentar na cozinha, o café com leite quente, na chávena de flores da Vó Zira, ainda intocado. A Tia Manecas dizia palavras cinzentas na manhã clara e nada as podia fazer voltar atrás!
Demorou a acreditar na mensageira de tamanha desgraça. Ainda Domingo o calor das mãos dele, do João, do seu João, tinha aquecido as suas, subrepticiamente, no final da missa. Nem um beijo sequer haviam trocado.
Maria Antónia deu por si a mudar por dentro. Tinha dores (de crescimento?) pelo corpo inteiro. Até para dormir se estranhou. Ela, que sempre encontrara consolo a adormecer de barriga para baixo, uma perna encolhida e outra esticada (tal e qual o pai), mãos debaixo da almofada de cetim, viu-se em posição fetal, enroscada em si mesma, evitando mexer-se um milímetro.
Atacavam-na lembranças de anos remotos, criança viva em correrias, gargalhadas a ecoarem na casa grande e no quintal. A mãe a manejar com destreza a agulha de croché, dando vida a colchas que dizia irem, um dia, cobrir as camas de sua casa. Sua? Pois se aquela era a sua casa!!!
O pai não costumava falar no futuro, à excepção da poupança! Sempre a ensinara que não podia deixar a luz acesa num aposento vazio ou que a marmelada a secar na janela era para comer quando houvesse uma ocasião especial (a lembrar-lhe da vez em que ela, matreira e ingénua, fora comendo o conteúdo de uma tigela, deixando o redondo da "capa" dura a disfarçar).
Naquele dia de Inverno, deixou-se ficar no quente dos lençóis, arredondou-se o mais possível, como que a abraçar-se, e desnasceu.
O terminal do
aeroporto fervilha de vida singular, mas plural de diversidade. Um casal de
Judeus ortodoxos, novíssimos, atrai o muitos olhares. Ela, com um bebé nos
braços, traja de azul escuro, camisola larga e comprida a combinar com a saia
de pregas pelo tornozelo, onde espreitam as meias grossas agasalhando os pés
nas sabrinas pretas. Na cabeça, um lenço igualmente preto. Ele, com o
costumeiro fato e chapéu pretos, as peiot (pequenos cachos) emoldurando o rosto
pálido. Passam os olhos pelos produtos de marca, detendo-se nas lojas de luxo,
mas nada comprando.
Há um certo ar
de recriminação e desconforto, ainda que disfarçado.
No entanto, a
chegada de uma família japonesa arrebata as atenções. Homem e mulher
elegantíssimos, vestidos com roupa Prada e acessórios marcadamente
extravagantes, seguidos por dois rapazes adolescentes usando sapatilhas
Balenciaga, airpods a afastar qualquer som externo e olhares perdidos na sua
“onda”.
Demoram-se um
pouco na zona de onde o primeiro casal tinha acabado de sair, compram uma mala
Céline de mil e seiscentos euros e uma pequena caixa com dois pares meias de
homem Louis Vuitton de quinhentos.
Dirigem-se à
porta de embarque conforme chegaram, altivos e distantes, apenas com mais dois
sacos de compras e menos alguns euros na conta do cartão de crédito dourado.
Há um certo ar
de recriminação e desconforto, ainda que disfarçado. Contudo, acrescente-se-lhe
uma ponta de inveja.
Na hora de
deixarem os sofás, há garrafas de água vazias, cascas de banana e invólucros de
bolachas e chocolates nas mesas baixas.
Dirigem-se à
porta de embarque de uma companhia low cost, arrastando as pequenas malas de
dimensão regulamentar.
Sigo-os, depois
de depositar o lixo no caixote mais próximo.